A NOSSA HISTÓRIA

A NOSSA HISTÓRIA
desde 1543

A constituição da Confraria da Santa Misericórdia das Velas ocorreu na casa do Espírito Santo no “ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e quarenta e três aos quinze dias do mês de Abril” quando aí “se ajuntaram muita parte dos moradores da dita vila e seu termo e ordenaram a confraria da Santa Misericórdia”.

Digamos que foi este o acto formal, pois que já antes se tratara do assunto apesar de “apartados para a dita confraria só se haviam feito mordomos até dia de Santa Isabel (entende-se, pelo menos, no ano anterior) João Álvares e João Dias, tecelão genro de Rui Vaz”

É mesmo muito possível que a ideia de fundação da Misericórdia das Velas fosse bastante anterior e, como afirma figurativamente João Soares de Albergaria “coevo com a colonização da Ilha” (In “Nota avulsa manuscrita do provedor João Soares de Albergaria” Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Vila das Velas).

Nota – Não se deve interpretar esta informação à letra, já que as Misericórdias Portuguesas surgem em data posterior ao povoamento, mas pode-se deduzir que a primeira geração de povoadores tenha sido coeva da fundação das Misericórdias e, como tal, tenham sido os precursores da Confraria da Santa Casa que, anos depois, se tenha constituído na Vila das Velas.

Do grupo de constituintes da Irmandade faziam parte homens da governança e mestres artesãos, mas, quase sempre (se não na sua totalidade), “os lugares de provedores tem sempre sido servidos por pessoas das principais e mais qualificadas da ilha” (In “O Velense”, número 82, de 23 de Abril de 1883), sendo poucos os provedores, com excepção da maioria dos clérigos que ocuparam tão prestimoso lugar, que não tenham servido a terra em cargos políticos municipais.

Foi, contudo, a implementação do Hospital da Misericórdia, cuja maior pujança se verificou após o testamento de D. Beatriz de Melo, a obra de maior vulto da Instituição e aquela que prevaleceu como mais importante através dos séculos.

No entanto, a par da actividade hospitalar, a Santa Casa da Misericórdia apoiava os pobres e indigentes; ao mesmo tempo apoiava os presos não só através do fornecimento de alimentação como, por vezes, através de esmolas em dinheiro; socorria os náufragos; acompanhava os defuntos à sua última morada; enfim praticava a caridade, através do cumprimento das obras de misericórdia.

Foi este conjunto de obras e tão rico percurso histórico em que “todas as Mesas e em todos os tempos, apesar da pobreza do estabelecimento, tem repartido o seu pouco rendimento anual com a pobreza enferma e necessitada, viúvas e entrevados – esmolando estes e abrindo o seu hospital àqueles” (In “O Velense”, número 82, de 23 de Abril de 1883)

Séculos depois, após a Revolução de Abril de 1974, com a expropriação do usufruto do edifício onde se localizava a sede da Misericórdia e o seu Hospital, passando os cuidados de saúde para a responsabilidade total do Estado, foi dada a machadada final na principal actividade da Misericórdia.

Terminada a gesta do Hospital, (esperando que ela, nas mãos do Estado, se multiplique por igual tempo!) não terminou, todavia, a gesta da Misericórdia das Velas.

Nem por isso, deixou esta instituição de actuar na comunidade, como o fazia há mais de quatro séculos. Em compensação, surgiu as novas actividades viradas para a Infância, com a abertura do Jardim de Infância em 1983, a Creche em 1996 e, em 2004, o A.T.L. dando resposta às necessidades de mais de cento e quarenta crianças com idades compreendidas entre os quatro meses e os onze anos.

As mudanças económicas e sociais nos séculos XII e XIII desmantelaram a vida das classes mais baixas, já que o sistema senhorial, pese embora tivesse resultado em grande exploração, por outro lado proporcionava ao servo certo grau de protecção.

Estas mudanças motivaram, então, a formação de sociedades (associações) para proteger os interesses dos artesãos e para proporcionar auxílio social. Assim surgiram as corporações de artesãos que tinham por objectivo proteger os interesses de determinado grupo e, a par ou um pouco depois, as confrarias que possuíam como característica a observância religiosa e se propunham realizar obras de caridade cristã.

Ora, a necessidade de assistência social que dera origem à fundação de irmandades de caridade na Itália durante os século XI, XII e XIII não era menos presente em Portugal, pelo que também aqui, com menos recursos financeiros disponíveis para a caridade, tiveram terreno (necessidades) propício ao seu surgimento, e consequente, crescimento rápido.

Essas necessidades poderiam ser resumidas, como já vimos, na trilogia da praga (peste), fome e guerra, de cujo medo ainda hoje se encontra vestígios em algumas orações antigas que se conservam nos terços do Espírito Santo, a que nos Açores foi acrescentado o perigo daqueles que “andam sobre as ondas do mar”.

As nossas Misericórdias foram, então, a materialização deste ethos cristão, além de terem constituído um hábil instrumento de influência política e de gestão escatológica das desigualdades socais.

Nas Velas, como no resto do país, a divisão social dos habitantes encerrava em si uma diferenciação acentuada entre os que tinham e os que dependiam.

Como vimos, dum lado, ficavam os senhores (fidalgos e escudeiros, clérigos, lavradores abastados) e, do outro, um elevado número de gente pobre (serventes, criados e escravos) que dependiam quase exclusivamente do trabalho vendido aos senhores e das condições climatéricas.

Pelo meio, social e economicamente, ficavam os oficiais das diferentes artes (sapateiros, alfaiates, oleiros, pedreiros, carpinteiros, etc.) que, embora com fixação municipal do preço dos seus serviços, eram considerados homens livres e pertenciam em segunda condição às confrarias, misericórdia e, mesmo, ao poder municipal.

De entre eles, eram escolhidos pela municipalidade os juízes de cada arte e a sua ascensão a mestre do respectivo ofício carecia de exame municipal.

Foram estes os artífices dos mais belos monumentos e construções da ilha, o sustentáculo da vida quotidiana dos nossos antepassados e os construtores principais do nosso património arquitectónico.

Ora, exceptuando algumas épocas de absorção da mão-de-obra disponível (tempo das sachas, das colheitas ou das vindimas), a maioria da população dificilmente tinha sustento suficiente e o rol de indigentes era exageradamente elevado, ressalvando-se aqueles poucos que, entretanto, haviam conseguido apropriar-se de alguma jeira de terra que mitigasse as suas necessidades alimentares.

Como resultado existiam grandes levas de pessoas cujo sustento provinha quase exclusivamente da mendicidade a que a sociedade, imbuída de fortes valores religiosos (que ao mesmo tempo apregoavam a posse e concentração da terra como desígnio divino e alertavam para a recompensa eterna após a morte, devendo todos ganhar o céu através das boas acções na terra), procurou criar instituições que organizadamente dessem resposta a uma situação que, permanecendo, podia de alguma forma ser prejudicial ao bom relacionamento entre proprietários e trabalhadores braçais, já que ao lado dos primeiros se encontrava a grande maioria dos artesãos e oficiais.

Como consequência desenvolveu-se um conceito de justiça social em que, muitas das vezes, a caridade substituía o direito.

As Misericórdias, embora na sua génese com objectivos mais limitados, surgiram como entidades que rapidamente se mostraram capazes de, respeitando as hierarquias funcionais da época, quer fossem religiosas como temporais, proporcionar o sufrágio das almas dos misericordiosos e, complementarmente, alguns meios de subsistência aos vivos como forma da garantia da recompensa para além da morte.

Como vimos, o seu surgimento começou nos finais do século XV e, nas Velas surge quarenta e cinco anos depois o que, atenda-se, é distância bem curta para a época, sendo a sua constituição apenas superada nos Açores pelas Misericórdias de Ponta Delgada, Vila Franca, Angra, Praia da Vitória e Horta.